quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A fotografia no Brasil


Em 16 de janeiro de 1840, o daguerreótipo chega ao Rio de Janeiro, trazido pelo Abade Compte, com todo o material necessário para a tomada de vários daguerreótipos, conforme noticiou o Jornal do Commércio naquele período:
“É preciso ter visto a cousa com os seus próprios olhos para se fazer idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos, o chafariz do Largo do Paço, a Praça do Peixe e todos os objetos circunstantes se achavam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela mão da natureza, e quase sem a intervenção do artista”

 Rio de Janeiro (1840)

 

 Enquanto na Europa vivia-se a efervescência cultural, originada grandemente pela revolução industrial e pelo avanço de pesquisas e descobertas em todas as áreas, residia no Brasil, desde 1824, o francês Hércules Florence.
Florence, sugestionado pela leitura de Robinson Crusoé, vê despertada sua paixão pela aventura e pelas viagens marítimas e, aos dezesseis anos, obteve autorização de sua mãe para seguir de navio para Antuérpia, em uma desastrosa viagem, em que Florence foi roubado e teve que refazer o caminho de volta a Mônaco, praticamente a pé, obrigado a trabalhar como desenhista para conseguir o seu sustento.
A aventura vivida por Hércules Florence, na Antuérpia, não o desanimou e, após renovar seu passaporte, embarcou para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro, em 1º de maio de 1824. Sem conhecer o idioma local, foi trabalhar com seus compatriotas, a princípio em uma loja de tecidos de Theodore Dillon, em seguida em uma livraria que pertenceu a Pierre Plancher.
Na livraria de Plancher, por meio de um anúncio de jornal, Florence ficou sabendo de uma expedição científica e resolveu procurar o Barão de Langsdorff, responsável pela expedição e foi aceito como integrante da comitiva, no cargo de segundo desenhista.
No retorno da expedição, Hércules Florence casou-se com Maria Angélica, filha de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, que havia conhecido nos preparativos da expedição na cidade de Porto Feliz, interior do estado de São Paulo. O aventureiro francês fixou residência na Vila de São Carlos, hoje cidade de Campinas, um dos principais centros culturais do estado de São Paulo.
Publicou no Rio de Janeiro, depois de seu casamento, observações feitas durante a expedição Langsdorff, que chamou de “Zoophonie” ou “Zoophonologie”.
Hércules Florence, durante toda sua vida no Brasil conviveu com intelectuais e estrangeiros ilustres, que enriqueceram seu conhecimento e ajudaram-no a desenvolver várias pesquisas e inventos, entre os quais está a criação do Papel Inimitável, cuja importância maior era evitar falsificações em quaisquer títulos de valor.
“O súbdito francês Hercule Florence, que era um cientista notável. Deve-lhe a ciência as descobertas que fez da polygraphia, aperfeiçoada depois sob a denominação de pulvographia, do papel inimitável, cuja importância maior era evitar falsificações em quaisquer títulos de valor, firmados naquele papel muito propriamente denominado inimitável...”
Florence preparou uma chapa de vidro como matriz, escurecida com a fumaça de um lampião, e aplicou uma camada de goma arábica. Após o endurecimento da cola, com uma agulha, desenhava ou escrevia nessa superfície, retirando a cola endurecida do fundo do vidro.
Hércules Florence fez anotações sobre seus inventos e descobertas nos documentos manuscritos entre 1830 e 1862, em francês, num volume de 423 páginas, intitulado de “L’Ami Des Arts Livré à Lui Même ou Recherches Et Découvertes Sur Différents Sujets Nouveaux”. Em um conjunto de três cadernos pequenos de informações, intitulados “Correspondance”, copiou diversas cartas por ele expedidas, em que há referências aos inventos.
Com a Poligrafia, tornou-se possível imprimir numa mistura de litografia e gravura em diversas cores. Foi então que Florence teve a idéia de utilizar a câmera obscura.
Ele escrevia ou desenhava no vidro para poder imprimir na prancha, utilizando-se da luz do Sol, do cloreto de prata ou ouro, como se fossem tinta de impressão, chegando naturalmente a um processo que se aproxima muito ao da fotografia, principalmente quando fez uso da câmera obscura. A matriz era colocada sobre um papel sensibilizado por cloreto de prata ou ouro, o qual era prensado à luz do Sol, obtendo-se como resultado uma imagem.
Na página quarenta e dois, do manuscrito, Florence faz referências às suas experiências com a impressão através da luz solar, processo que originou a Photographie: Dei a essa arte o nome de Photographie, porque nela a luz desempenha o principal papel.”
Personagem importante para o aperfeiçoamento da fotografia foi o boticário Joaquim Corrêa de Mello, que trabalhava na farmácia de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, sogro de Florence, e o auxiliava em suas experiências.
“Nestas pesquisas, com ele colaborava inteligentemente o grande botânico e químico paulista Joaquim Corrêa de Mello [...] (p.149).
Florence também reconhece a importância de Corrêa de Mello, quando registra, na página 103 do caderno Correspondance, a origem da composição do nome fotografia: “Em 1832, assaltou-me a idéia de imprimir pela ação da luz sobre o nitrato de prata. O Sr. Correia de Mello (muito notável botânico brasileiro) e eu demos ao processo o nome fotografia.”
Florence havia manifestado ao botânico Joaquim Corrêa de Mello o desejo de encontrar uma forma alternativa de impressão por meio da luz do Sol, que não precisasse das pesadas máquinas de tipografia, e um meio simples em que as pessoas pudessem imprimir. Corrêa de Mello informou a Florence que as substâncias que poderiam atender às suas necessidades seriam os sais de prata, pois esses sais escureciam em função da luz. Hércules Florence descreveu suas experiências com sais de ouro, na página 46, como uma substância sensível à luz. Certamente foi o primeiro na história da fotografia a utilizar esse método.
O cloreto de ouro é um material fotossensível, não tão sensível quanto o sal de prata, mas possibilita um maior controle sobre o processo de impressão em papéis sensibilizados com cloretos de ouro, apesar do alto custo.
[...] “Esse sal deverá servir de tinta para a impressão das provas. É externamente caro, mas suas propriedades são tais, que me sinto obrigado a preferi-lo ao nitrato ou cloreto de prata, que é quatro ou seis vezes mais barato. Se não se tratasse de pôr cloreto de ouro nos traços, a despesa não seria excessiva, mas é indispensável molhar toda a superfície do papel sobre o qual se imprime. [...:]
Hércules Florence afirmou que o cloreto de ouro produzia melhor efeito no pergaminho Holanda, para carta, e em todos os papéis de qualidade superior. Como o cloreto escurece em contato com a luz do dia, convém molhar o papel à noite, ou em câmara escura. O processo de Florence consistia em emulsionar uma das faces do papel com um pincel, estender as folhas, para que secassem durante a noite. Uma vez que os sais de prata e o ouro são sensíveis à luz, após a secagem eram guardados em pastas bem fechadas, protegidas.
Na página quarenta e oito, do manuscrito “L’Ami Des Arts Livre a Lui Meme ou Recherches Et Decouvertes Sur Differents Sujets Nouveaux”, Florence fez anotações sobre suas pesquisas com urina, sais de prata e ouro.
Leitor ávido, Florence teve acesso a uma publicação de Berzelius sobre uma experiência desenvolvida em 1777, pelo químico Karl Wilhelm Scheele (cit. p. 3), em que o amoníaco reduzia os sais de prata não atingidos pela luz. A partir desse momento, ele e Corrêa de Mello começam a fazer experiências com a urina, pois eles não dispunham de amoníaco na Vila de São Carlos.
[...] exposta ao sol, uma estante simplificada, sujeita à inclinação tal que os raios solares fiquem perpendiculares à superfície que se pinta de preto. Nela se aloja a prancha de vidro, com o desenho virado para dentro; coloca-se entre a prancha e a estante uma folha de papel sobre o qual há uma camada de cloreto, que aí se deixa cerca de um quarto de hora. Sabe-se que o cloreto de ouro escurece quando exposto aos raios solares. Ora, estes atravessam o desenho e só escurecem o papel sobre que incidem e, dessa forma, fica impresso o desenho. Retirada a prova, o desenho mal aparece. Levando-o para a escuridão põe-se em bacia em que se junta água e urina. O desenho torna-se imediatamente preto pela ação da urina; aí se deixa bastante tempo e, ao ser retirado, é posto a secar na sombra. [...]
Há descrições de outras pesquisas em que o amoníaco, ou o hidróxido de amônia, funcionou perfeitamente como agente fixador para obtenção da imagem por meio da câmera obscura, embora a solução forte clareasse demais os desenhos.
Florence tinha plena consciência de que suas pesquisas poderiam levá-lo ao reconhecimento como inventor. Começou a temer o sucesso e a fama que a divulgação de suas pesquisas poderiam acarretar. Deixou registrado na página três, do caderno “Correspondance”, trecho de carta dirigida a Charles Auguste Taunay. Nela lamenta o rumo que a história tomou.
Como são revelações importantes para o entendimento das pesquisas e da história da fotografia, transcreverei um longo trecho dessa carta, que relata suas invenções e os contatos para a divulgação de seus estudos. Temos, além disso, citações ao retrato do índio Bororó, que teria sido colocado na bagagem do Príncipe de Joinville, filho do rei da França, em 1838, um ano antes do anúncio oficial da descoberta de Daguerre:
[...] “Não passarei em silêncio, um incidente que começou em 1833. Veio-me à idéia um dia, era 15 de agosto (1832), que se poderiam fixar as imagens na câmara escura. Realizando a primeira experiência, verifiquei que raios solares passaram diretamente, do tudo mal ajustado ao instrumento, e sensibilizaram o papel embebido de nitrato de prata. Patenteou-se-me, então, que se poderiam imprimir escrita e desenhos gravados (a jour sur) em vidro coberto de negro e goma. Imprimi um anúncio com uma fama a fazer às vezes de cabeçalho, que espalhei pela cidade e que me fez vender muitas mercadorias, porque fazer propaganda desse tipo era novidade para Campinas. Dei ao processo o nome de “Fotografia”. Entre outros desenhos e autógrafos fotografados, imprimi ao sol o retrato de um índio Bororó, que enviei ao Sr. Felix Taunay, que me respondeu com a notícia de o ter colocado no álbum do príncipe de Joinville, por ocasião de sua primeira viagem ao Rio de Janeiro. Certo ano em que estive nessa cidade, se não me engano, em 1836, faleilhe a respeito de tais experiências, mas, quando em 1839 ocorreu a invenção de Daguerre, monologuei: - Se eu tivesse permanecido na Europa, teriam reconhecido meu descobrimento. Não mais pensemos nisso. Não necessito dizer-lhe que o objeto desta carta e falar-lhe de meus descobrimentos artísticos. Preciso, porém, pedir-lhe que tenha a paciência de ler-lhe o conteúdo.
No meio do pequeníssimo número de pessoas capazes de conhecer a Poligrafia, o Sr. é a primeira a quem dela falei em 1831, sucedendo que a acolheu otimamente. Tanto quanto o Sr. tomou parte ativa no desenvolvimento dela. E dela o Sr. falou ao Sr Eduardo Pontois, Encarregado de Negócios da França, o qual testemunhou muito interesse por meu invento tendo-lhe eu remetido, por sua solicitação, nesse mesmo ano de 1831, um memorial em que revelava o inteiro segredo da Poligrafia, acompanhado de duas provas: uma, de um escrito autografo; outra, de um índio Apiacá. O Sr. Pontois escreveu-me que ia encaminhar tais peças ao Ministério do Interior, em Paris, mas jamais recebi algo que me cientificasse de que elas tiveram esse destino.
Contra minha expectativa, dificuldades locais, porque eu trabalhava na província de São Paulo, interromperam o aperfeiçoamento dessa nova arte. Mal grado houvesse eu já concretizado os princípios da escrita e desenhos no papel celular, da prancha abastecida de tinta para toda a tiragem, e da impressão simultânea de todas as cores, de 1831 a 1848, durante um período de 17 anos, (a litografia inventada em Monique foi conhecida em Paris somente 17 anos depois), tive que contentar-me de imprimir para Campinas e cercanias, porque, do ponto de vista da nitidez, a Poligrafia não teria podido suportar paralelo com a litografia, no Rio de Janeiro e na Europa.
Durante esse período, procedi a impressões policromáticas para o Teatro de Itu, para um farmacêutico em São Paulo, para minha fábrica de chapéus, etc..
O público, porém, não entendia coisa alguma disso. Campinas era o único ponto do mundo em que se imprimiam todas as cores simultaneamente, porquanto o descobrimento de Lipmann, em Berlim, que assombrou a Europa, só foi anunciado em 1848, mas a sombra devia cercar as minhas invenções. “

Insistentemente Hércules Florence registrou, em seus manuscritos, seu lamento e pesar por não ver seus inventos reconhecidos pelo mundo. Embora tenha pesquisado e trabalhado em vários inventos, ele jamais conseguiu sequer reconhecimento por um único, mesmo sendo genro do influente Álvares Machado, um dos principais políticos brasileiros e ter travado conhecimento com outros personagens importantes do período: Dr. Carlos Engler, o botânico Joaquim Corrêa de Mello, o Barão de Langsdorff, cônsul da Rússia no Brasil; Pierre Plancher, fundador do Jornal do Commércio do Rio de Janeiro e o próprio Imperador D. Pedro II. Lamentava estar vivendo longe da Europa, onde, tinha certeza, veria seus esforços reconhecidos.

Hércules Florence construiu, de maneira muito rudimentar, uma câmera obscura, utilizando a paleta de pintor e a lente de um monóculo, e conseguiu uma imagem precária da vista da janela de sua casa num papel sensibilizado com sais de prata, depois de quatro horas de exposição. Essa imagem acabou se perdendo, deteriorando-se como tantas outras que ele descreveu:
[...] “Fabriquei muito imperfeitamente uma câmara escura, utilizando uma caixinha, que cobri com minha paleta em cujo orifício introduzi uma lente que pertencera a um óculo. Coloquei o espelho e, a conveniente altura, dentro pus um pedaço de papel embebido de fraca dissolução de nitrato de prata. Depositei esse aparelho numa cadeira, em sala naturalmente escura. O objeto que se representava na câmara escura era uma das janelas, com a vidraça fechada: viam-se os caixilhos,o teto duma casa fronteira e parte do céu. Aí deixei isso durante quatro horas; em seguida, fui verificar e (palavra ilegível por dilaceração da página nesse ponto), retirado o papel, nele encontrei a janela fixamente representada, mas, o que devia mostrar-se escuro, estava claro, e o que devia ser claro, apresentava-se escuro. Não importa, porém; achar-se-á logo remédio para isso..” [...]
Hércules passou pelo mesmo problema outras vezes e, em pouco tempo, teve a idéia de colocar a imagem, obtida em negativo, em contato com outro papel sensibilizado e voltar a expor, sob a ação da luz, obtendo uma imagem na posição correta, ou seja, imagem em positivo. E foi essa mesma idéia que, o inglês, Willian Fox-Talbot, teve.
Na história da fotografia, outros pesquisadores encontraram dificuldades enormes com a questão da inversão de imagens em negativo e positivo. Com Florence não foi diferente:
[...] “Tomei um pedaço de caixilho, escureci-o à fumaça de uma candeia e nele escrevi, com um buril muito fino, estas palavras: “Empresta-me teus raios, ó divino Sol”. Ajeitei, em baixo, um fragmento de papel, preparado como já tive o ensejo de dizer, e o expus ao Sol. Dentro de um minuto, as palavras aí se fizeram visibilíssima e com o maior primor possível. Lavei imediatamente, e durante muito tempo o papel, para evitar que seu fundo também escurecesse. Deixei-o ao Sol, por uma hora, e o fundo do papel adquiriu leve cor. Contudo, o que nele estava escrito continuou sempre inteligível, conservando-se assim o papel, por vários dias, até que simples curiosidade de saber qual seria a ação do calor numa débil porção de nitrato de prata, me induzisse a queimá-lo.” [...]
Florence mencionou também uma fotografia que teria feito da cadeia pública de Campinas. Havia ali uma sentinela que, na fotografia, teria saído negro, quando ele era branco. Na realidade, Hércules Florence havia feito uma imagem em negativo da vista da cadeia pública de Campinas.
A intenção de Hércules Florence era encontrar uma forma alternativa de fazer impressões por meio de a luz solar; já a dos pesquisadores europeus, era a gravação de imagens da natureza por meio da câmera obscura.
Florence faz uma observação na página 158 de seu manuscrito, sobre as experiências da fotografia e fixação da imagem por meio da câmera obscura, sensibilizada com nitrato e cloreto de prata e ouro. Em nenhuma dessas anotações, refere-se às pesquisas realizadas, no mesmo período, na Europa, por Necéphore Niépce, Louis Jacques Mande Daguerre e Willian Fox Talbot, ou mesmo relata qualquer conhecimento de pesquisas anteriores com câmera obscura e sais de prata.
Florence denominava-se “um inventor no exílio” - sentia-se isolado no Brasil. Relatou por diversas vezes, em seus manuscritos, as dificuldades para obter materiais para suas pesquisas, a falta de pessoas que pudessem entender suas idéias. Seus lamentos e angústias ficam evidentes no texto a seguir:
...“Inventei a fotografia; fixei as imagens na câmera obscura, inventei a poligrafia, a impressão simultânea de todas as cores, a prancha definitivamente carregada de tinta, os novos sinais estenográficos. Concebi uma máquina que me parecia infalível cujo movimento seria independente de um agente qualquer e cuja força teria alguma importância. Comecei a fazer uma coleção de estudos de céus, com novas observações, muitas, aliás, e meus descobrimentos estão comigo, sepultados na sombra, meu talento, minhas vigílias, meus pesares, minhas privações são estéreis para os outros. Não me socorreram as artes peculiares às grandes cidades para desenvolver e aperfeiçoar alguns de meus descobrimentos, para que eu me cientificasse da exatidão de algumas de minhas idéias. Estou certo de que, se estivesse em Paris, um único de meus descobrimentos poderia, talvez suavizar-me a sorte e ser útil a sociedade. Lá, talvez não me faltassem pessoas que me ouviriam, me adivinhariam e me protegeriam. Estou certo de que o público, o verdadeiro protetor dos talentos, me compensaria de meus sacrifícios. Aqui, porém, ninguém vejo a quem possa comunicar minhas idéias. Os em condições de as entenderem, seriam dominados por suas próprias idéias, por suas especulações, pela política, etc.”.
Existem duas versões quanto ao local em que se encontrava Florence, quando descobriu que Daguerre obtivera êxito na gravação da imagem. A primeira versão é do próprio Hércules Florence, registrada em seus manuscritos: estava no campo, à beira de um rio, quando um visitante francês lhe deu a notícia.
Em longo e comovente texto, registrado no caderno três, Florence narra suas descobertas e inventos:
“Estávamos em 1839. Encontrava-me no campo, na morada de um amigo. Sentia-me alegre, conversando muito com um de seus hóspedes, homem afável e instruído. Falávamos de diversas coisas, à noite, numa viga, sentados ao luar, à margem do rio. De repente ele me diz: -“Sabe do belo descobrimento que acaba de fazer-se?” -“Não” – respondo.

-“Óh! É admirável! Um pintor de Paris achou um meio de fixar as imagens na câmara escura. Li isso no Jornal do Commércio. Ele focalizou uma chapa de prata, impregnada de um sal que muda de cor pela ação da luz, e chegou até a obter duas ou três cores.”
Senti um choque no coração, no sangue, na medula dos ossos, em todo o meu ser. Recalquei ao máximo o mais rude choque que já me foi dado experimentar e, assim, não perdi a compostura. Formulei-lhe circunstanciadas indagações, mas o jornal só se limitara ao fato. Afirmou-me que não restava dúvida quanto ao descobrimento, porquanto o Sr. Arago fizera a respectiva comunicação à Academia e a Câmara dos Deputados concedera uma recompensa a seu autor. Pus-me, então, a explicar-lhe a teoria desse invento e recolhemo-nos a casa. Não era o mesmo de momentos antes; tudo, em mim, era melancolia, estendida ao que havia em derredor. Os objetos e os sons faziam-se confusos. Apesar disso, sustentava razoavelmente minha parte da conversação, nessa reuniãozinha de amigos. Sofria. Ceei, é verdade que com bastante apetite, e fui deitar-me crente que uma noite tormentosa me esperava, porque meu mal estar moral era intenso. Dormi, no entanto, passavelmente bem, entretanto.
Não saberia dar suficientes graças a Deus, por haver-me dotado de uma alma forte, o que, antes dessa prova, eu desconhecia.
Vários meses depois, meu interlocutor assegurou-me que percebera minha perturbação. O dia que sucedeu a tão agitada noite, montei a cavalo, com meu companheiro de Campinas. A viagem e os cuidados do negócio serviram para distrair-me. Minha dor voltava como que por acessos, mas pouco a pouco me resignei.
Passados dias, encaminhava-me a uma residência rural em que se encontrava a mais luzida companhia que já vi no Brasil, que teria sido distinguida em todos os países do mundo. No caminho, observava os feitos de luz das árvores e das folhas: veio ao espírito a daguerreotipia e perturbou-me. Todavia, mais adiante, no campo, esqueci-me de meu sofrimento. Foi a última repercussão do abalo que experimentara. Desde aí, dediquei-me (palavra ilegível) à prova da bomba. Esperei e espero experimentar a mesma sorte, no respeitante à Poligrafia. Soube em 1848, com mais coragem, da invenção de Lipmann, que é Poligrafia, em que eu diversamente obtivera êxito, tanto quanto com o daguerreótipo, porque eu a realizara na perfeição e imprimia simultaneamente todas as cores, desde 1834, aqui, em meu exílio, defrontado por pessoas que nela não enxergavam o mínimo e sem jornais, sem público que fosse capaz de compreender-me. E se alguém entende que esses temores, essas emoções são pueris, lembre-se de que um inventor não pode ser impelido a trabalhos tão pouco lucrativos, se não pelo desejo de conquistar um diploma de imortalidade aos olhos dos pósteros. A glória é tudo para ele. Ainda que acompanhada da miséria, do desprezo e de todos os sentimentos, ela lhe faz às vezes de fortuna, honras e todos os gozos. Portanto, é preciso ter uma alma pouco comum, para ver escapar vinte anos de sacrifícios de toda natureza e não ter efetivamente mérito de sacrificar-se para qualquer coisa que seja útil aos homens”
A partir desse momento, Florence abandonou suas pesquisas com câmera obscura e sais de prata e escreveu em uma cópia do diploma maçônico, conseguido através do processo da câmera obscura sensibilizada com nitrato de prata, que outros tiveram mais sorte. Fez a divulgação de suas pesquisas por meio do jornal O Pharol Paulistano e Jornal do Commércio do Rio de Janeiro, sem obter êxito e o reconhecimento esperado.
A segunda versão é narrada pela historiadora Chloé Engler de Almeida (bisneta de Carlos Engler), a qual afirma que Florence mantinha algumas amizades na cidade de Itu, e que se reuniam freqüentemente. O amigo mais próximo era o médico austríaco Karl von Engler, que possuía uma clínica de saúde no sítio Emburu, na cidade de Indaiatuba, equipada com uma sala de cirurgia e laboratório de química, além de uma vasta e atualizada biblioteca. É conhecido no Brasil como Dr. Carlos Engler.
“Hércules Florence é dos meus mais caros amigos. A amizade que nos é feita de confiança e compreensão mútuas. Florence é gênio, mas muito modesto. Homem de vasta cultura está constantemente à procura de novos conhecimentos. De uma feita, veio me contar, muito em segredo, que havia descoberto uma maneira de fixar a imagem sobre chapa de aço polido.
Essa descoberta lhe havia custado muitas noites mal dormidas e dias de exaustivas experiências. Aconselhei-o a divulgar a sua invenção, única no mundo, pois até essa data a maneira de fixar uma imagem era deficiente e inadequada. Florence, modesto, deixava o tempo correr, obrigando-me também a guardar seu segredo.”
Segundo a historiadora, o Dr. Carlos Engler descreve o episódio em que Florence toma conhecimento da descoberta de Daguerre, quando estava em sua residência acompanhado de amigos.
“Todas as tardes, como velho costume, nós nos sentávamos à porta de minha casa – o Hércules, eu e mais uma meia dúzia de amigos. A prosa era geral; pouca maledicência. Quase sempre discorríamos sobre política, pois as idéias liberais dos brasileiros tomavam vulto. Numa das vezes, o Hércules trouxe consigo uns compatriotas, e a prosa discorreu toda em francês. Esses franceses estavam de passagem por Itu, rumo a Mato Grosso. O Certain, que era nosso companheiro de prosa, ainda não havia chegado.
De súbito, aparece ele, nervoso, quase a gritar: “Boa tarde! Vocês já souberam da grande notícia?” Ansiosos, esperamos. E ele: “Fiquem sabendo que Daguerre, na França, acaba de descobrir o modo de fixar a imagem sobre chapa de aço polido! Não é formidável?
Os franceses ali presentes não se mostraram surpresos, pois já sabiam das experiências de Daguerre. Olhei para o Florence que, muito pálido, parecia prestes a desfalecer. Certamente, muito desapontado, não compreendia o que se passava. Hércules Florence, ao constatar que o seu silêncio fora a causa da perda de uma glória que deveria ser sua, não suportou o impacto. Teve uma síncope, e se eu não o amparasse, teria batido com a cabeça no chão. Transportado para dentro de minha casa e deitado num sofá, socorri-o às pressas. Felizmente, recuperou logo os sentidos, conservando, porém, uma expressão abobalhada, perplexa.
Pela modéstia, o Brasil deixou de ser o berço de uma das mais notáveis invenções deste século.”
A genialidade e a criatividade de Hércules Florence são inegáveis, suas experiências e seu interesse pelas artes são inquestionáveis. Mantinha vasta correspondência com eminentes personalidades brasileiras e estrangeiras, participou de uma das mais importantes expedições que percorreu o Brasil, tinha amigos ligados à imprensa, relacionava-se freqüentemente com pesquisadores e cientistas mundialmente conhecidos, cultivava laços de amizades e parentesco com políticos, comerciantes, e até mesmo com o Imperador D. Pedro II. Mesmo assim não quis ou não pôde divulgar seus inventos, estudos e descobertas. Talvez, como afirma seu amigo Dr. Carlos Engler, “a modéstia o tenha impedido de alcançar sua glória como um grande inventor.”
Para o Prof. Dr. Etienne Samain; “Querer isolar Hércules Florence de todo movimento de descobertas e curiosidades exasperadas, emanadas no século XIX, com a Revolução Industrial, com a ascensão do Iluminismo, é algo que não se pode imaginar.”
Hércules Florence permaneceu no Brasil por 55 anos, quase toda sua vida, ausentando-se pouquíssimas vezes da Vila de São Carlos. Após 1830, realizou uma única viagem à Europa, para visitar sua mãe. Esse fato torna-se importante, segundo o Prof. Dr. Boris Komissarov, da Universidade de São Petersbugo, pois o ano desta viagem, 1835, coincide com o período em que Louis Jacques Mandé Daguerre estava envolvido com as pesquisas referentes ao daguerreótipo em Paris e Willian Fox-Talbot estava desenvolvendo suas pesquisas em Londres:
“Durante quase meio século, Florence pouco saiu de São Carlos ou da Província de São Paulo. As raras visitas ao Rio de Janeiro depois de 1830, e a viagem à Europa em 1835, para encontrar-se com a mãe, foram todas as suas saídas. A expedição de Langsdorff ficou para ele não apenas como lembrança, mas como objeto de reflexão e tema de trabalhos literários.”
Essa afirmação não é confirmada, nem aceita pela família, depositária dos manuscritos de Hércules Florence. Seus parentes afirmam que essa viagem ocorreu em 1855, na companhia de sua segunda esposa Carolina Krüg.
É curioso também o trecho da carta de Hércules Florence a Félix Taunay, diretor da Academia Imperial de Bellas Artes, em que ele afirma que já havia comunicado Taunay desde o início sobre suas pesquisas, entregando inclusive um memorial sobre a Poligrafia.
Fica evidente a amizade entre Hércules Florence e o Dr. Carlos Engler, o convívio estreito que os unia. Engler elogia Hércules Florence como pesquisador, inventor e, sobretudo como amigo. Resta saber por que Florence menciona tão raramente seu amigo.
Hércules Florence conseguiu gravar imagens, na Vila de São Carlos, com câmera obscura e sais de prata, seis anos antes de Daguerre,na Europa, valer-se desse mesmo material. Além disso, deixou várias outras descobertas que contribuíram para o enriquecimento das artes visuais no Brasil, como o Dicionário Sinótico Noria, Pneumática ou Hidrostática (1838), De la compreension du gaz hydrogène, appliquée à la direction des aérostats. (1839), Papel Inimitável e Impressão inimitável (1842), Stereopintura, Impressão dos Tipos-Sílabas (1848) e Pulvografia (1860).

Nenhum comentário:

Postar um comentário