quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Retrato do homem bicentenário


Tataranetos de Hércules Florence lembram pioneirismo na fotografia e as aventuras do francês que viveu em Campinas.

 Em frente à cadeia de Campinas, então Vila de São Carlos, o guarda de sentinela permanecia estático. Devia estar desatento à pequena caixa coberta com paleta de pintor, instalada havia horas em algum ponto dos arredores. O orifício na improvisada câmara escura acomodava a lente dos óculos de Hércules Florence, que pretendia fixar a imagem da fachada da cadeia em papel sensibilizado com nitrato de prata. “Queira Deus que se possa imprimir com a luz”, anotou no seu diário, em 3 de julho de 1833. Já sabia que o papel escureceria no sol – como os tecidos indianos que perdiam a cor – e, por isso, lavou-o em água para diminuir a reação fotoquímica e guardou-o dentro de um livro. Segundo relatos, assim ele conservou várias imagens, que apreciava somente à noite, sob luz de vela. Mas as provas se perderam. Inclusive aquela, que seria a primeira fotografia de um ser humano produzida no planeta.


Hércules Florence: Centro de Memória da Unicamp abriga autobiografia do pioneiro
No Centro de Memória da Unicamp (CMU), encontra-se uma autobiografia de Hércules Florence - ou Hercule, seu prenome em francês -, de 1832, em que descreve seus estudos sobre o processo fitoquímico. O acervo também reúne desenhos, reproduções de telas e dez rolos microfilmados com os manuscritos narrando a saga da famosa Expedição Langsdorff. Uma árvore genealógica traz o histórico dos parentes – Florence teve 20 filhos, 13 do primeiro casamento com Maria Angélica Álvares Machado, em 1830, ano em que se mudou para Campinas, e sete com a protestante Carolina Krug. É a quinta geração, a de tataranetos, que preparou uma grande cerimônia para 29 de fevereiro, bicentenário de nascimento do desenhista, pintor, fotógrafo, geógrafo, tipógrafo e aventureiro.
“Ele nos deixou uma importante herança genética. Percebo isso claramente, pois descendo de seu sexto filho, que se casou com uma prima-irmã. Filhos de casamento entre primos recebem maior concentração de genes com as características da família. De modo geral, os Florence herdaram traços da personalidade de Hercules e alguns talentos, como a propensão artística”, afirma o psiquiatra Francisco Álvares Florence Neto, tataraneto residente em Americana – ele compilou vários dos apontamentos do ancestral. “É nosso dever manter viva a memória de um artista e homem de ciência que representa o salto tecnológico ocorrido no século XIX”, endossa Antonio Francisco Álvares Florence, também tataraneto e um dos organizadores do evento no Hotel Royal Palm Plaza.

Photographie

O barão Heinrich Von Langsdorff: demência provavelmente causada pela malária
O experimento da cadeia era um a mais, desde que Hércules, passeando na varanda de sua casa em agosto do ano anterior, intuiu sobre a possibilidade de fixar imagens em câmara escura, utilizando um elemento que mudasse de cor com a ação da luz. O boticário Joaquim Correia de Mello foi quem o informou sobre o nitrato de prata. Ambos batizaram o processo de “photographie”, cinco anos antes de Herschel, a quem historicamente se atribui a introdução do termo. O jornalista Boris Kossoy tem o mérito da reconstituição obstinada dos métodos e técnicas desta descoberta isolada, divulgando-a ao mundo e colocando o nome de Florence entre dois conterrâneos: Joseph Niépce e Louis Daguerre, que depois anunciariam a invenção da fotografia.
O professor José Joaquín Lunazzi, do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp, lembra que havia dois grandes problemas na época. O primeiro era a fixação das imagens. Segundo o professor, Hércules conseguiu preservar desenhos em vidro, que eram copiados sobre sais de ouro, mas não as fotografias, feitas sobre sais de prata. A solução para o segundo problema, o da sensibilidade (exigia-se exposição de horas ao sol), com o processo de revelação e a fixação atingida para os sais de prata, é atribuída a Daguerre. “Como um apaixonado pela fotografia, que me levou à ciência da óptica, posso imaginar Florence trabalhando: suas emoções quando algum resultado evidenciava progresso, a esperança em um novo material, seu desespero com o tempo passando e o progresso não chegando. A decepção, alegria e curiosidade simultâneas ao saber que o alvo tinha sido atingido, embora por outra pessoa”, comenta Lunazzi.
Florence chegou à “photographie” ao perceber a escassez de tipografias no país. O professor da Unicamp Jacques Vielliard, que escreve artigo nesta página, conta que o autor foi obrigado a publicar por conta própria Recherches sur la voix des animaux, no Rio, e ficou irritado com a quantidade de erros tipográficos. Havia, também, a premência de publicar sua pesquisa sobre “Zoophonia”, em que descrevia o som produzido pelos animais vistos durante a Expedição Langsdorff. Já morava em Campinas quando criou a poligrafia – técnica similar à do mimeógrafo –, que permitia a impressão das cores simultaneamente. Graças ao apoio do sogro Álvares Machado, instalou uma tipografia completa no largo da Matriz do Carmo. Ali foi impresso O Paulista, primeiro jornal do interior de São Paulo, em 1842; e o Aurora Campineira (1858), que inaugurou a imprensa na cidade.



Viagem trágica


O psiquiatra Francisco Álvares Florence Neto,
tataraneto de Hércules: memória preservada

A Expedição Langsdorff partiu de Porto Feliz em 22 de junho de 1826, visando atingir o rio Amazonas por via fluvial. Alcançou o porto de Cuiabá em 30 de janeiro de 1827, mas a viagem só recomeçou em 5 de dezembro, em dois grupos. O primeiro, com o barão Heinrich Von Langsdorff e Hércules Florence, subiu o Tapajós e chegou a Santarém em 1º de julho de 1828. Nesse trajeto, o barão adoeceu gravemente, assim como muitos dos expedicionários, ficando mentalmente perturbado. No segundo grupo, o primeiro desenhista Adrien Taunay sofreria pior sorte, morrendo afogado no rio Guaporé. A expedição só se reuniu em Belém, regressando de navio ao Rio de Janeiro, em 13 de março de 1829.

 

Desenhos feitos por Hércules Florence
durante a Expedição Langsdorff: originalidade

Num caderno de bolso, Florence descreveu os acontecimentos trágicos, aspectos das regiões, costumes da população e dos índios. Baseado em cópias de diários, Francisco Florence, o tataraneto de Americana, chegou à conclusão – aceita por estudiosos – de que a demência de Langsdorff se deveu a malária. “Tenho comigo publicação do Hospital do Juqueri, onde trabalhei, com casos antigos de pacientes em que a malária desencadeava a psicose. O barão sofria de picos febris toda tarde, entrando em delírio; depois de certo dia, não mais voltou ao estado normal”, diz o psiquiatra.
Os registros científicos da expedição – referentes a zoologia, botânica, mineralogia, etnografia, medicina, lingüística – estiveram perdidos por praticamente cem anos em instituições de Moscou e Leningrado. Em 1875, Alfredo D’ Escragnolle, o Visconde de Taunay, encontrou cópia do diário que Florence deixara com a família, relatando a parte da viagem do Rio até Cuiabá. Ao contatar o autor, o visconde recebeu e traduziu uma cópia que já estava pronta para publicação havia 15 anos, incluindo a segunda parte da viagem. A versão considerada completa, com informações e comentários acrescidos depois de 20 anos, teve tradução publicada em 1977. Hércules Florence faleceu em 27 de março de 1879, em Campinas, onde morou por 49 anos.

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